A Casa da Morte Certa - Albert Cossery


"A casa estava tão desamparada nos seus mais pequenos recantos que, para além dos elementos exteriores que fomentavam a sua ruína, encerrava em si mesma o gérmen do seu desabamento. Nada o podia deter na sua metódica e vertiginosa destruição."
'A Casa da Morte Certa, Albert Cossery

Há um ano que aguardava este primeiro encontro com Albert Cossery, na expectativa de que fosse mais um dos autores da interessante vaga existencialista. É, no entanto, mais do que isso: faz-nos ver a inevitabilidade e a falta de importância dada às coisas relevantes, mas também nos leva a pensar, a revoltar, a agir. A saltar das páginas do livro para olhar à nossa volta e tentar compreender um pouco melhor o mundo que nos rodeia.

Na casa da morte certa, os seus habitantes vivem na pobreza, em condições miseráveis, com apartamentos degradados e um senhorio que não quer saber deles e dos seus problemas, não assumindo inclusivamente a responsabilidade pelas necessárias obras que a casa precisa para evitar o seu desabamento. E eles aguardam, uns desinteressados, outros procurando uma solução concertada junto do senhorio ou de outras entidades, na expectativa de salvar a casa e as suas vidas.

"Não tinham vontade de se levantar, nem de fazer o mais pequeno gesto. Sentiam-se aprisionados no seu destino e banidos para sempre do resto do mundo. A casa poderia ruir: ela encontrá-los-ia prontos para o supremo sacrifício. Para quê moverem-se, se tudo deve, por fim, cair no vazio da morte?"

Entre os habitantes desta casa perdida no Egipto encontramos vários trabalhadores de rua - vendedores de alfaces, carroceiros, domadores de macacos -, árabes, pobres, sem esperança e sem espírito de equipa. Todos partilham um certo egoísmo (natural do ser humano, é certo, mas nem sempre tão vincado) que os desresponsabiliza e afasta dos problemas comuns, seja por desinteresse, seja por vaidade.

Mais mesquinho, egoísta e pobre (de espírito!) que todos eles, o senhorio Si Kahlil, rico e cheio de esquemas, ignora todas as tentativas dos inquilinos de salvarem a sua casa da morte certa. Apesar das muitas diferenças que os afastavam uns dos outros, procuram unir-se contra este homem e contra a sua atitude silenciosa e inerte perante a sua desgraça. Este espírito de equipa, de revolta e de vingança marca também, de certa forma, esta obra de Cossery, ainda que na verdade representem mais uma questão de palavra do que de acto.

"Não havia como a noite para os pobres. Só nela se sentiam eles próprios e podiam esconder a vergonha da sua agonia."

Se a casa tem a morte certa, os homens e as mulheres que a habitam também. E aos poucos vão revelando estas suas atitudes mesquinhas, talvez pela proximidade da morte, talvez pelo medo de perderem tudo. E por isso não confiam nunca plenamente uns nos outros, desconfiam sempre das suas ambições pessoais.

Diz-se que foi esta ambição, causa de todas as desgraças do mundo, que Cossery quis aqui retratar no seu sentido filosófico, face àquele que apenas quer da vida os simples prazeres da existência. Daí a veia existencialista, daí a aceitação das coisas como são, sem grandes exaltações. Mas em Cossery há de facto muito mais do que isso: há revolta nas almas e nos corações, há essa ambição desmedida no peito de cada um destes habitantes. E há uma insuficiência suficiente de força de vontade e de revolução que faz tudo terminar quase como começou.

"As crianças dormem tranquilas. Nunca se queixam. O homem esse queixa-se porque percebe que é um escravo. Procura sair disso grita debate-se mas nada acontece. As crianças são a força que se erguerá um dia da lama dos bairros populares. Uma força imensa e explosiva que nada mais poderá deter. Vinda do fundo das vielas submergirá as praças e as avenidas. Rebentará como um mar tempestuoso atingindo desta forma o rio as ilhas adormecidas no esplendor dos palácios. Aí deter-se-á por fim. Respirará vigorosamente. Terá atingido o seu objectivo."

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