Habibi - Craig Thompson

"Habibi... Tu és mais do que uma história."
'Habibi', Craig Thompson

A melhor prenda deste Natal tinha de ser um livro - e daqueles para devorar em menos de uma semana, com muito amor. 'Habibi' é tudo o que podemos esperar de um romance em forma de novela gráfica: uma história de esperança, de amor e da constante busca de liberdade contada com muita emoção.

'Habibi' baseia-se numa fábula do Médio Oriente e conta a história de Dodola, uma menina de nove anos que é vendida pelos pais iliteratos para casar com um escrivão. Com ele aprende a ler e apaixona-se pela matemática, pela narrativa e pelas lendas que caracterizam a cultura árabe. Ao escapar a ser vendida como escrava, Dodola conhece Zam, um menino de três anos que ajuda a escapar e com quem passa a viver num barco abandonado no deserto. A sua relação vai evoluindo de mãe e filho para irmão e irmã, e mais tarde para um amor que ultrapassará todas as barreiras. Mas Dodola é forçada a prostituir-se para conseguir sobreviver e quando perde o rasto a Zam as suas vidas transformam-se radicalmente, nunca perdendo o que os une desde crianças.

Dodola e Zam começam por ter uma origem em comum: o desígnio da escravidão. Dodola tem até a marca de escreva, como uma eterna condenada a uma vida de escravidão, se liberdade, numa fuga constante e sempre na luta pela sobrevivência. Por isso - e pela precocidade do seu casamento, que a tornou adulta muito cedo - a prostituição surge-lhe como uma forma de conseguir sustentar-se e a Zam, por um lado, e por outro (mais tarde, com o Sultão) a escapar à prisão.

Dodola vende o corpo como se este não lhe pertencesse e os outros fazem dele uso, aproveitando-se desta necessidade de sobrevivência. Mesmo quando das suas entranhas nasce uma criança, não há qualquer ligação emocional a esta criação originada no seu corpo, contrariamente ao que acontece com o seus sentimento maternal em relação a Zam. Por seu lado, Zam tem vergonha do que Dodola fazia para os ajudar a sobreviver e vive na esperança de conseguir ser uma criatura puramente espiritual, sem desejo, sem o lado mais animalesco do homem, em compensação de todo o sofrimento de Dodola.


Esta busca pela pureza e pela inocência num mundo sujo, de contrastes entre o primeiro e o terceiro mundo, de luxúria e abuso por parte dos mais poderosos, é aqui realçada pelo autor como um espelho do estado do mundo na luta pelos recursos do planeta, uma luta muito contemporânea mas que sempre separou os mais ricos dos mais pobres, os poderosos dos escravos. Ao acompanhar o lado da pobreza e da escravidão, Craig Thompson mostra o barco abandonado onde o casal protagonista passa nove anos da sua infância e adolescência, a cabana do pescador que os ajuda perto do final, as barragens cuja água é levada directamente para a cidade poderosa e para longe das populações que dela necessitam.

A par da questão social, é também a religião e a origem comum do Cristianismo e do Islamismo (Isaac e Ismael, ambos filhos de Abraão) que preocupam o autor, com o objectivo de mostrar o lado mais puro e mágico da religião e da cultura árabes face aos extremismos. Mostra, através das histórias e do desenho, que o que une estas duas culturas religiosas é muito mais do que aquilo que as separa, ao ponto de às tantas já nos deixarmos confundir pelo que Dodola tem na cabeça sobre ambas.

Li algures que o desenho de Craig Thompson tem o brio cinematográfico de Will Eisner, e não podia estar mais de acordo. O traço intenso, a preto e branco, realista sem perder a magia da memória, das lendas e da ficção, fascina tanto nas imagens mais inocentes como nas mais cruéis. A distinção entre as memórias, as histórias bíblicas ou do Corão, o presente em que Dodola e Zam vivem e ainda as emoções mais fortes como o desejo e emoção, é também feita através do desenho, com molduras, vapores e sobretudo com uma grande mestria na intersecção destas várias narrativas.

Na sua base, 'Habibi' é, como o nome indica ("meu amor", ou "meu amor querido", em árabe), uma história de amor que evolui de um amor materno para um amor de irmãos, e mais tarde para um amor romântico, entre Zam e Dodola. Os números acompanham esta ligação forte, dos nove anos de separação entre eles aos nove anos que passaram juntos, aos nove meses que dura a gestação de uma criança no útero de uma mulher, aos nove quadrados dos quadrados mágicos que organizam a novela gráfica em nove capítulos.

Uma história emotiva de luta e esperança, com personagens únicas e apaixonantes, que nos fascina do início ao fim e não nos pode deixar indiferentes. Uma prenda recheada de amor, do melhor namorado do universo <3

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