O Mundo de Ontem - Stefan Zweig

"Cada um de nós, mesmo o mais pequeno e insignificante, viu a sua existência mais íntima revolvida pelas convulsões vulcânicas, quase ininterruptas, da nossa terra europeia; e, no meio dos numerosos outros, não consigo atribuir-me nenhuma primazia senão esta: a de, enquanto austríaco, enquanto judeu, enquanto humanista e pacifista, ter estado sempre exactamente no ponto em que estes abalos sísmicos mais se fizeram sentir."
O Mundo de Ontem - Stefan Zweig

Há uma expressão que vou para sempre associar a Stefan Zweig, à sua vida e à sua morte: a existência e a perda de uma "pátria espiritual" que ele próprio criou. 'O Mundo de Ontem' é o melhor título para ilustrar as memórias de um homem que nasceu num mundo feliz e despreocupado, onde quase de repente se tornou impossível viver e muito menos pensar em criar um mundo do amanhã.

Stefan Zweig nasce em 1881 em Viena, no auge de prosperidade do Império Austro-Húngaro e numa cidade culturalmente muito rica e activa. Tem uma educação privilegiada, viaja por toda a Europa enquanto jovem, conhece e torna-se amigo de muitas personalidades da época (com Rolland, Valéry, Freud, Rillke, Verhaeren etc.). 

Com o eclodir da Primeira Guerra Mundial, um sentimento patriótico em torno da vizinha Alemanha leva a população austríaca a unir-se mais que nunca. Zweig afasta-se das questões da guerra e torna-se pacifista, escrevendo inclusivamente sobre a necessidade de regressar à paz. Traduz muitas obras de e para o alemão, escreve alguns dos seus mais famosos ensaios e romances, e os anos do pós-guerra levam-no à crença de uma Europa unida, de uma paz impossível de se desestabilizar novamente.

A ascensão de Hitler na Alemanha, nos anos 30, no entanto, fá-lo entender que esta crença não passara de uma ingenuidade. Muda-se para Inglaterra e faz poucas e breves visitas à sua pátria, que em breve também deixará de o ser: os seus livros são proibidos na língua alemã, a Áustria é invadida pelo exército de Hitler e a II Guerra Mundial prova a toda a Europa que ainda não tinha chegado o fim da sua agonia. Pior, que estes anos de sofrimento seriam ainda mais intensos do que alguma vez o foram.

Relato estes passos da vida de Stefan Zweig apenas para ilustrar a sorte e o azar que teve, em simultâneo, de viver uma época historicamente tão rica, mas também tão sofrível. Poucos poderão dizer que viveram tanto, em tão pouco tempo, e de forma tão intensa como um homem das artes, um humanista e pacifista que acredita e confia na honestidade das pessoas, um judeu de família, um austríaco cidadão europeu. Não podemos imaginar nem uma pequena parcela do que viveu, embora estas suas memórias nos permitam entender perfeitamente os acontecimentos que criaram a sua personalidade e todos aqueles que lhe foram, aos poucos, destruindo a liberdade individual.

Por tudo isto, quando se exila no Brasil, em 1941, com a segunda esposa Lotte, não planeia regressar mais à Áustria, que agora o renega e à sua obra. Deixa de a ter como pátria física; é renegado, até, como cidadão austríaco. E da Europa leva apenas a saudade de um passado e a ilusão de uma pátria espiritual que existiu em tempos, num continente de livre circulação, de liberdade de pensamento e liberdade de expressão. Este mundo que ontem era, hoje já não o é. Desapareceu, como toda a vida que conhecera antes daquele momento.

"Se havia arte que tínhamos de aprender de novo, nós, os perseguidos e desalojados daqueles tempos hostis a qualquer arte e a qualquer coleção, essa era a arte de dizer adeus a tudo o que tinha sido outrora o nosso orgulho e o nosso amor."

Nas antigas pátrias deixa uma grande parte do que construíra e coleccionara ao longo de uma vida inteira: objectos que pertenceram a grandes personalidades que admirava e coleccionava; os seus livros e outras obras que estavam na sua posse; enfim, todos os pertences que estimava e que o exílio não permitira transportar para um local tão longínquo como o transatlântico Brasil. Os seus meses em Petrópolis, perto do Rio de Janeiro, são por isso sombrios, depressivos e sem qualquer humanidade a que se agarrar.

Para a escrita deste 'O Mundo de Ontem', livro autobiográfico e de memórias, o homem que outrora fora um dos autores mais aclamados da Áustria e da língua alemã pôde apenas utilizar e basear-se, precisamente, na sua própria memória. Tudo o que escreve pode ser enviesado pela distância temporal e pela opinião que tem de si mesmo (perante si e perante os outros). Não deixa, no entanto, de ser um exercício de memória muito emotivo e um notável relato histórico da época que viveu.

E se 'O Mundo de Ontem' não é historicamente perfeito, é-o, pelo menos, como obra literária - e como memória de um homem muito interessante de conhecer de forma tão íntima. A sua escrita, como nas obras de ficção, é mais do que um simples relato de uma história: é uma construção narrativa carregada de sentimento, de um humanismo contagiante, de uma nostalgia única. Conhecer Stefan Zweig, aqui, é ler tanto a história macabra da maldição das suas peças de teatro quando (quase) levadas à cena, como também os últimos dias da mãe na Áustria antes de Hitler ter invadido o país e procurado os judeus para eliminar a sua presença da Europa.

Por outro lado, é também levar-nos, enquanto leitores interessados e apaixonados, mais de 70 anos após a sua morte, a descobrir mais sobre este homem, as suas emoções e intenções, a sua vida mas também a sua morte. Porque em 1942 acreditava-se que Hitler não pararia pela Europa e Zweig temia que o sol, o calor e a beleza de um Brasil turístico e despreocupado fossem destruídos para sempre por este homem que queria conquistar o mundo. E ele, Stefan Zweig, o que seria depois disso? Aos 60 anos, continuaria a fugir? Como poderia reconstruir novamente e eternamente a sua vida, criando um mundo de amanhã que se pudesse assemelhar, o mínimo possível, ao mundo de ontem que já não existia?

Em Fevereiro de 1942, Zweig e a sua esposa põem fim à vida na sua casa de Petrópolis, onde nos últimos cinco meses o autor e o homem que neste livro se nos dá a conhecer compôs nostálgica e melodicamente um relato escrito das suas memórias. Para ele não havia outro destino possível, depois de ter perdido praticamente tudo o que a sua vida procurara construir. Para nós, que o lemos hoje, não há forma melhor de nos continuarmos a apaixonar pela sua existência e pela sua obra do que com este inesquecível 'O Mundo de Ontem'.


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