Diário Inédito - Vergílio Ferreira

"Minha Gina: vou hoje começar um diário para ti. (...) Tu sabes que um diário é sempre falso. Nós somos quase sempre falsos até mesmo quando pensamos, porque o pensar é já um desnudar-se uma pessoa perante si mesma."
'Diário Inédito', Vergílio Ferreira

Já andava em ânsias para ter este livro nas mãos e poder ter um cheirinho de Vergílio Ferreira por Vergílio Ferreira, neste seu registo mais pessoal. 'Diário Inédito' é composto por registos escritos entre 1944 e 1949, numa idade em que o autor estava exactamente na fase de descoberta de um novo estilo para a sua escrita - entre o neo realismo e uma espécie de existencialismo 'crítico' que aqui já enuncia.

É difícil falar de um livro que não tem uma história, mas muitas; que não tem um fio condutor, é antes um aglomerar de pensamentos dispersos, de histórias, poemas e até declarações de amor. Todo o diário é, em parte uma declaração do autor à esposa Regina - começa por sê-lo, pelo menos, mas com o tempo torna-se mais um exercício mental de Vergílio Ferreira, e ao mesmo tempo um diário/diário, até tendo em vista a sua posterior publicação (que ele próprio não admite na sua escrita).

"Ó tempo de aço frio! Meu coração tenho-o a ferros,
Fossilizado granito de sonhos já sem destino.
Humano sou-o na pedra, a zinco a verdade e erros,
Pensando-me a amor ou ódio, a duro metal retino."

Entre reflexões sobre a escrita, a actualidade do país (sim, os muito aguardados comentários sobre o Estado Novo existem!! Rejubilei), os livros que vai lendo (e as doutrinas que vai conhecendo) ou os locais por onde vai passando, vamos conhecendo melhor este homem, que foge do 'olhar' dos seus leitores (que tanto condiciona a sua escrita) e que se fecha tanto, de certa forma, nos seus pensamentos. São tantos os seus 'medos' - se assim lhes podemos chamar -, as suas dúvidas, as suas ideias negativistas,  que Vergílio Ferreira parece, aos 30 anos, um homem bem mais velho, bem mais maduro, apesar de toda a sua (ainda) inconsolidada natureza intelectual.

E é contagiante... Queremos sempre ler o dia seguinte, saber o que ia na sua cabeça quando visitava Évora, quando dava aulas, quando estava doente e quando viajava. Os momentos em que se dirige à esposa podem ser os mais bonitos, mas as longas críticas a Sartre e os poemas aparentemente sem nexo, que para nós parecem esconder tanta coisa por decifrar, são também grandes exemplos da genialidade de Vergílio Ferreira.

"Trabalho, luto sempre. Por amor, por ódio, por vaidade? Quem pode traçar o limite à qualidade dos impulsos humanos? Por mim suponho que, se insisto em escrever, é apenas porque não descubro outro sentido para dar à vida."

Ainda vou ter muito que ler e aprender sobre Vergílio Ferreira. Este serviu um pouco para a tese, mas também para perceber melhor a relação do autor com o meio (que ele considera bastante determinista!), o contexto em que vive (e consequentemente a sua relação com o Estado Novo). É interessante, também, toda a introdução da editora Fernanda Irene Fonseca, que oferece em dúvida uma longa reflexão sobre o que estamos prestes a ler. E este pack inédito torna-se um exercício imperdível.

Contudo, como escreve Vergílio Ferreira, para que servem as palavras? Para que as queremos, quando cada instante vivido se perde no instante seguinte? Diz o génio, e bem:

"A palavra é um espartilho das ideias - diz-se. É pior. Não só uma ideia fica deformada na palavra, como isolada irremediavelmente de quantas ideias lhe pertencem."

Comentários